BRUNO QUINTELLA | Do FACEbook | Sintoma invisível

Tijuca. Uma rosa branca, solitária, aos pés do bar de portas fechadas. Um relógio de parede trincado de tiros – e seus ponteiros paralisados: a morte paira pelas ruas da cidade e não há objetos suficientes que materializem a dor. 

Nove e meia da noite. Hora da novela para quem está de folga ou quem já cansou da folia. Ou nunca gostou. O garçom não se enquadraria em nenhuma das modalidades, era um cara alto astral e tinha um sorriso hábil. Morreu enquanto trabalhava. Um tiro no peito. Eu estava em casa, assim como muitos. Samuel estava na rua, assim como tantos. Algumas pessoas bebiam ali no bar, assim como qualquer um. 

Não é preciso tentar se imaginar lá para sentir a dor. A situação atual na cidade é de anestesia social. Não queremos mais sentir a literalidade de sentimentos que não necessariamente nos pertencem, apenas ficamos na solidariedade instantânea de uma morte violenta. Um comentário besta numa postagem dos sites jornalísticos confirma a preocupação periférica da sociedade: “porra, o cara deu mole.” E, mais uma vez, é preciso sair em defesa da vítima. 

Uma das coisas que aprendi na profissão de jornalista foi a partir de um erro crasso da imprensa nos anos 1980. Havia um clima também de anestesia social. Era salutar o convívio de bandidos e sociedade. O traficante de drogas Marcinho VP foi capa de caderno de cultura de jornal. “quando você está no inferno nunca é tão quente.” É uma frase que abriu minha cabeça quando ouvi pela primeira vez de um grande jornalista. Foi talvez a sentença que resume o fardo que é ser um profissional da imprensa. É natural que endureçamos, mas a ternura… bem a ternura tá difícil de (re)encontrar. E é, também, uma autocrítica. Mas acontece é que, mais uma vez, a própria sociedade parece anestesiada. Paralisada. 

Voltamos a naturalizar a violência, talvez não com o romance de outrora, mas ao criar aplicativos para saber onde tem tiroteio, quando sabemos o motivo porque soltam fogos na favela de madrugada, quando um policial mata um colega por pensar se tratar de um bandido, quando um jornalista é ameaçado por guardas municipais, quando matam 15 numa chacina no Ceará, quando voltam pela contra-mão no túnel por causa de arrastão, de operação policial ou um carro enguiçado. Terrorismo urbano é o intervalo entre o que acontece entre dois assaltos. Enquanto isso a gente segue a vida, no lazer ou no trabalho. Foi por esse motivo que Samuel morreu. Assim como muitos, ele naturalizou a violência da qual pretendia fugir, talvez num outro estado. 

Muitas pessoas não entenderam porque ele não correu para se esconder. Talvez nem ele. Resumir a vida de um rapaz por causa de alguns segundos e tentar classificar sua morte como vacilo é triste. É o sintoma invisível de uma sociedade que absolve a doença e condena o enfermo.
Bruno Quintella
4 h ·

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