RELATO DE UMA BIXA (sic) CARBONIZADA | Do FACEbooK | Publicado por Gustavo Henrique Amorim
[ ALERTA TEXTÃO ]
Hoje é o primeiro dia do início do fim de um ciclo pessoal de resistência viada dentro da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O fim de um ciclo cheio de dias lindos azuis mas sempre, eu digo, SEMPRE torrando no sol escaldante das ofensas gratuitas dos professores conservadores, da exclusão arbitrária dos colegas preconceituosos e da nossa própria auto-sabotagem por acreditarmos que não devíamos estar ali depois de tanto ouvirmos isso da comunidade padrão.
Nos primeiros meses a dor era leve. A queimadura do sol era de primeiro grau e era amenizada pela sensação de vitória por fazer parte da mais antiga e maior universidade do Brasil. Por estudar na tantas vezes eleita melhor faculdade federal de Medicina do país. Que privilégio !!! Mas logo esse filtro solar acabou e a blindagem contra os raios de ódio não existia mais. A humilhação era constante. “Viado não pode fazer urologia” disse um professor. ”Viado faz toque retal sem luva” dizia o médico durante a aula prática. “Essas bixa dão o cu e depois vem reclamar que pega HIV” disse o outro. “Você é muito afeminado. Se contenha na enfermaria” disse o meu preceptor de clinica médica. “ Ainda bem que não veio aquele viado, senão tacaria fogo nele” disse o anestesista durante um plantão na maternidade escola. A cada ofensa a dor aumentava. A pela escaldava diante da humilhação.
A queimadura se aprofundava. No final do segundo ano já atingia a derme e era de segundo grau. Por dentro o dano era ainda pior. A falta de pertencimento e a exclusão trouxeram-me a depressão e a ansiedade. Quantas vezes pensei em desistir do que mais amava porque não era bem vindo? Quantas vezes chorei nos corredores, no colo dos amigos, no telefone com a família... A minha maior conquista se transformou na minha doença. E ironicamente quem foram os principais responsáveis pelo meu adoecimento ? Pessoas que curam. Pessoas que deveriam curar. Não se ensina na Faculdade de Medicina que o preconceito adoece. Que o preconceito mata. Que o preconceito acaba com Vidas com V maiúsculo. Os heróis da Semiologia médica, da artrite psoriásica, da eritroblastose fetal... Os heróis dos palavras difíceis não sabiam uma palavra simples: Respeito.
Nesse ponto já havia uma destruição total de todas as camadas da pele. A queimadura atingia seu terceiro grau, seu dano era irreversível e ali ficaria, inexoravelmente, uma cicatriz.
Mas não bastava o sol pra queimar. Um dia acordei carbonizado. Não restava mais nada. só o pó preto das minhas cinzas que se amontoavam diante da manchete do El país “Assassinato de estudante negro e gay no Rio escancara intolerância na universidade. Diego Vieira foi encontrado morto, com sinais de espancamento em campus da UFRJ.
“Um crime de ódio dentro da minha casa. Um crime de ódio contra a minha família. Um crime de ódio efetuado pelas mãos de uma pessoa mas motivado pelas palavras de muitas outras. O estopim de uma violência diária. Naquele momento eu revivia minhas memóriaos... olhares tortos me assombravam e as vozes novamente me diziam ” bixinha” , “Viado”, “Queima rosca”, “Não pode fazer urologia”, “Não usa luva no toque retal”, “Afeminado! Se contenha!”, “Tacava fogo naquele viado”...
O sangue de Diego escorre nas mãos dos LGBTfobicos e nas mãos dos Racistas. O sangue de Diego Escorre nas mãos de muitos de meus professores e colegas. Esse sangue poderia ser meu ou de qualquer uma das minhas manas já Cansadas de tanto botar a Cara no sol. Ainda não temos um escudo para nos proteger da violência física, mas, felizmente, hoje temos um guarda-sol. Agora as LGBTQIA+ estão protegidas pela sombra do nosso coletivo Diversidade Medicina UFRJ-Luciana Cominato. Foram necessários mais de 200 anos para que esse espaço de força mútua e resistência fosse criado dentro da BRANCA HETERO CIS NORMATIVA ELITISTA medicina UFRJ.
Luciana Cominato foi a primeira aluna trans (que se sabe) da medicina UFRJ. Luciana abandonou o curso sem completa-lo pois a dor causada pelos raios de sol era forte demais. Em 2015 abrimos esse guarda-sol para que sob a nossa sombra a dor das queimaduras sejam amenizadas. Para que as feridas de estudante algum jamais deixem de ser tratadas e que, assim, todxs nós possamos nos graduar e transformar os espaços conservadores onde não somos completamente aceitxs.
Saio dessa universidade com a certeza de que (des)construímos um lugar melhor e que as LGBTQIA+ da FMUFRJ sempre conscientes do privilégio que tivemos de ter acesso à saúde e educação, possamos garantir um atendimento humanizado e de qualidade para todxs, especialmente para as minorias ainda expostas à crueldade do sol.
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